31 de janeiro de 2005

Herança

Dando os devidos créditos ao mr Fallen Angel... Valew!
:-)


Meu pai estava certo. Por muito tempo achei aquilo errado, exagerado, parcial demais.

"Esse é o mundo real..."

Estas palavras nunca saíram da minha cabeça. Há vinte anos elas ecoam em mim e corroem minhas idéias e meus atos. Mas no fim de tudo meu pai estava certo. Tentei ignorar o que ele me disse aquele dia depois do desenho animado. Quando cresci e entendi o que ele me disse, tentei esquecer aquele mundo que ele me descreveu. Impossível, não se pode fechar os olhos para a verdade. Ontem o corpo dele foi encontrado perto de uma casa em uma cidade do interior. A casa era dele.
Hoje de manhã eu e minha mãe fomos lá. Nos deram a chave, levaram o corpo para autópsia e foram embora. Minha mãe quis ver o corpo, mas não o tiraram de dentro do saco preto. Nem disseram nada. Já estava em decomposição.
Minha mãe, que sempre foi fria e nunca demonstrou muitas emoções, abriu a porta tremendo, mas mesmo assim não chorou. Uma casa arrumada, mobiliada e mais luxuosa do que a casa em que sempre moramos. Livros que nunca imaginei que meu pai leria, uma cama de casal maior do que a que havia em casa. Eu sempre quis uma casa de campo...
Meu pai estava certo. Depois eu percebi. Eu discordava, mas não há fuga.

"A sua felicidade é a desgraça de outro."

Seu lugar no time de futebol é o choro do outro garoto. O seu emprego é a fome do cara engraçado de topete que te ajudou antes da entrevista pra esse emprego. O aborto que sua namorada fez é o filho que alguém poderia cuidar.
Meu pai acertou em tudo. Eu o admirava.
Ele tinha duas vidas, duas famílias. É aquela vagabunda chorando ali do lado do caixão, a ruiva. Bonita ela, e deve ter a minha idade... Eu sempre quis uma namorada ruiva.
Minha mãe mandou colocar tudo dentro dos sacos. Livros, filmes, cartas, quadros. Havia até um brasão com duas espadas acima da lareira. Uma lareira, eu sempre quis
uma lareira!
Era um sobrado. No quarto havia uma sacada com plantas. Meu pai nunca quis ter plantas em casa, ele disse que faziam mal, porque elas só fazem fotossíntese de dia e à noite elas consomem oxigênio como nós. Chutei um pouco de terra e um caco daquele vaso para baixo antes que minha mãe visse.
A sua felicidade é a desgraça de outro. No criado-mudo, fotos dele com a ruiva e com uma menininha. Deve ser aquela que está ali. Ela é filha da ruiva, aposto que é filha dele.
Minha mãe já estava dando palpites de como redecorar a casa, disse que nos mudaríamos para lá. Para quê?! Casa de campo é para descansar, não para morar.
Ela mandou que eu tirasse os vasos da sacada. Ainda bem que pra levar era só um vaso grande. Olhei pela sacada e o carro importado estava lá embaixo, parado a três metros da porta da casa. Meu pai media 1,76.
Empacotamos tudo e descemos a escada. A segunda vida do meu pai estava toda lá, nos sacos. O vaso grande não era muito pesado. A adrenalina chega até a dobrar a força de uma pessoa, dependendo do caso. O vaso serviu.
Eu não poderia imaginar que todas as coisas da outra vida do meu pai pesariam mais do que o corpo dele. Quando dei com o vaso na cabeça dele, empurrei ele sacada abaixo e levei o corpo para o barranco atrás da casa, ele não estava tão pesado. Adrenalina.
Apesar de sempre querer um carro importado, eu não gostei muito daquele modelo. Mas minha mãe ficou bem nele. Nunca imaginei que ela pudesse chorar tanto. Sou o único
herdeiro da casa de campo com lareira e sacada.
Esse é o mundo real, a sua felicidade é a desgraça de outro. Agora vou deixar você com a sua mãe pra ela te dar a mamadeira, depois vou conversar com a ruiva. Talvez eu consiga alguma coisa.

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